No ano passado, a Polícia Civil realizou centenas de prisões a partir da chamada Operação Caronte, que seria, segundo o governo do estado de São Paulo, uma ação de “inteligência” para combate ao “tráfico de drogas” na região da Cracolândia, no centro da capital paulista. No entanto, um relatório divulgado pela Defensoria Pública de São Paulo mostra que a maioria dos detidos eram pessoas em situação de rua que portavam cachimbos sujos.
O trabalho analisou 641 registros de prisões feitas entre setembro e novembro de 2022. Dessas, 638 foram enquadradas somente no Artigo 28 da Lei de Drogas (11.343 de 2006), que diz respeito ao porte de substâncias para consumo pessoal. Apesar da exigência legal de exame que comprove a existência da droga ilícita, em 74 casos, não foi apresentado o laudo toxicológico. Em 556 casos, foram apreendidos cachimbos com “resquícios e sujidades” de cocaína ou maconha e, em apenas oito, houve apreensão de drogas em alguma quantidade.
Nos casos em que foram apreendidas drogas, as quantidades variavam de 0,05 grama (g) a 1,5 g, para cocaína, e 0,29 g a 2,7 g, em relação às situações em que a pessoa foi encontrada com maconha. “Apesar de a lei não prever a possibilidade de criminalizar a conduta de portar instrumento ou objeto utilizado para o consumo de drogas, verifica-se que a atuação policial centrou-se na apreensão do cachimbo, independentemente da existência de substâncias na posse do usuário/a decrack”, enfatiza o relatório.
Apenas oito pessoas presas tinham endereço determinado nos registros policiais. Em 86,7% dos casos foram alternadas as denominações “morador de área livre”, “sem residência fixa” e “morador de rua”. Em 11,5% das prisões não há qualquer informação sobre o local de residência da pessoa detida. “Os termos circunstanciados não trazem qualquer reflexão sobre o que significaria residir em uma “área livre” e de que modo essa condição se diferenciaria de não ter uma residência fixa ou estar em situação de rua”, pontua o relatório sobre a análise dos registros policiais.
As detenções não eram individualizadas, sendo feitas em grandes grupos encontrados nas imediações do 77º Distrito Policial, da Santa Cecília, responsável pela condução da operação. No registro com maior número de pessoas, foram levados de uma vez só 27 detidos, quando a média é de 12 prisões por vez. Entre os presos, 91 foram levados mais de uma vez nos 53 termos circunstanciados relativos às detenções. Entre as pessoas presas, 63% eram negras e 86%, homens.
Em 45 dos 53 termos circunstanciados, lavrados após as prisões ocorridas entre setembro e novembro do ano passado, a Justiça decidiu não dar andamento aos processos. Em três casos, ainda não havia decisão até o encerramento da coleta de dados. “Vale pontuar ainda que, por meio da utilização do instrumento dohabeas corpusde ofício, os juízes enunciaram em suas decisões o reconhecimento da prática de flagrantes ilegalidades nas operações da polícia civil”, diz o documento sobre o instrumento evocado em 39 decisões.
“O fato de 90% das prisões terem sido consideradas ilegais pelo Judiciário e de os processos sequer terem tido seguimento mostra que a ação da polícia, além da violência, que a gente já tinha noticiado e coletado dados, também é ilegal”, enfatiza a defensora Fernanda Balera, uma das coordenadoras da pesquisa. “Muitas pessoas estavam sequer portando drogas e eram detidas por porte de drogas”, afirma.
Quanto ao fluxo estabelecido para encaminhamento dos detidos a serviços de saúde, o relatório aponta uma série de inconsistências. “A Secretaria Municipal de Saúde associa a detenção realizada na carceragem da delegacia com suposto “acolhimento” e chancela o fluxo de encaminhamento estabelecido entre a polícia e os equipamentos de saúde, sem problematizar a impossibilidade de garantir que seja estabelecida no ambiente policial e da carceragem uma política de conscientização baseada no consentimento livre e esclarecido do usuário”, destaca o documento, a partir da visita aos equipamentos e consultas à prefeitura.
Além da concepção considerada problemática pela defensoria, o relatório aponta falta de informações precisas sobre a quantidade de pessoas que foi efetivamente encaminhada após as prisões, assim como confusão nas atribuições dos serviços. “Informou-se que, apesar da voluntariedade, as pessoas que aderem ao programa do Serviço de Cuidados Prolongados devem ser acompanhadas por técnicos durante as eventuais saídas do SCP”, exemplifica o texto sobre as contradições encontradas durante visita a um dos serviços.
“O mais importante é que os dados mostram é que a velha receita de usar polícia, prisão e detenção como estratégia para a questão social da Cracolândia não dá certo. Pelos dados, as pessoas são presas e voltam para o mesmo lugar, não recebem encaminhamento de saúde”, resume Fernanda.
Para a professora Taniele Rui, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que também participou da coordenação do relatório, a Operação Caronte parece ter tido como objetivo desgastar as pessoas desprotegidas socialmente que vivem ou frequentam a Cracolândia. “A gente ficou pensando o quanto essa operação teria sido eficiente nessas táticas de esgotamento, de fazer cansar, de fazer as pessoas irem para outros lugares, não ficarem ali. De precarizar ainda mais a situação na rua”, afirma.
O contexto de violência impede, na visão da pesquisadora, a construção de projetos de cuidado efetivos. “O fato de que, nessas situações de violência, de perseguição, de detenção constante, de prisão como ameaça, torna-se muito difícil sequer pensar em redes de cuidado, de apoio. Isso desmonta os próprios profissionais, que tem que ficar em regime de urgência, denunciando. Não consegue nem se articular para pensar cuidado porque está reagindo à violência institucional”, diz.
Ao comentar o relatório, a prefeitura de São Paulo diz que, no período entre setembro e novembro de 2022, as equipes de saúde e assistência social “realizaram 24.385 abordagens, 3.620 atendimentos de saúde, 5.591 encaminhamentos para a rede socioassistencial, 646 encaminhamentos para a rede de saúde e 701 encaminhamentos para a Siat II [Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica], totalizando 6.938 encaminhamentos”.
Ainda segundo a nota da prefeitura, desde 2017, funciona no município o Programa Redenção, que promove acolhimento pelo Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica. O serviço está, de acordo com a administração municipal, “dividido em três categorias: Siat I, Siat II e Siat III. A depender do nível de autonomia do usuário, conforme analisado pelo Núcleo de Acompanhamento de Casos (NAC), ele é encaminhado para um desses serviços”.
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